Passei os últimos nove meses grávido. Duzentos e sessenta e nove dias. Grávido pela segunda vez da mesma filha, a filha que eu já não tinha. A filha que, na primeira gestação, me fez engordar dez quilos junto com a mãe. Que, após nascer, me fez desabar por quarenta e dois dias, junto com a mãe, enquanto estava entre a vida e a morte numa UTI neonatal. Que me acompanhou durante quase trezentas e sessenta e cinco noites afora de muito leite em pó na mamadeira, golfadas no cangote, fraldas diarreicas, olheiras de uma satisfação só — e sozinhos. Que me foi, sim, hoje, sequestrada.
Como nem quase todo bom filho de pais separados. Mas como todo bom sequestrado, padece da conhecida Síndrome de Estocolmo.
Sem entrar nos pormenores dos nove anos seguintes em que, aos trancos, conseguia estabelecer um acordo verbal não necessariamente com a mãe e sempre consegui me fazer presente (fora nove meses tratando dum linfoma chato e um ano e três meses sendo maltratado num mestrado mais chato ainda, dois anos no total em que tentava vê-la, pelo menos, por uma semana a cada dois meses y bué, dá pra dizer, tudo por ela), hoje, mais uma vez, me dei conta de que não tem jeito, pai é pai.
Não precisa ser o cara mais legal e carinhoso do mundo. E até o cara mais legal e carinhoso do mundo, um dia, vai acabar cometendo um erro. Ainda assim: ainda pai. Pode viver numa carranca eterna, numa jogatina eterna, ter todos os vícios. Pode ser um beberrão sempre ausente que dorme ao volante e perde os dentes. Pode ser frio, quente, morno. Burlar o INSS, a Receita, até a Companhia de Eletricidade. Ter todas as amantes. É pai. Vai sempre defender sua cria.
Nem que, pra isso e dependendo do caráter, tenha que passar por cima da cria dos outros. Nem que, pra isso, chegue à sandice (prefiro acreditar) de ameaçar o pai da sua neta, pai esse em contenda com a mãe, filha daquele, de implantar drogas no seu carro, meu carro e acionar o Departamento de Narcóticos.
Tudo porque, após nove meses de gestação sem contato senão pelo cordão umbilical, e com a devida decisão judicial (enfim) em mãos, quis parir minha filha. Fui impedido e ameaçado. Era só a assinatura de uma juíza num pedaço de papel, afinal. Eu, apenas o pai. Não posso parir.
Não, não sou o cara mais legal e carinhoso do mundo. Longe disso. Quem me conhece, que o diga. Distância, pra mim, é questão de sobrevivência, meu ganha-pão. Mas, com minha filha, tento ser. Só que até o cara mais legal e carinhoso do mundo comete erros. Bater na minha filha não está entre eles. Gritar com minha filha ou qualquer tipo de violência psicológica, tampouco. Opa. Uma vez, sim, gritei e ameacei bater. Talvez, porque ela, minha filha, com apenas oito anos, gritava comigo e me batia de fato. Aí, pensei: ou grito de volta ou essa pestinha vai acabar no crack. Gritei. Única vez. Pra nunca mais.
Nunca foi fácil. Ficou impossível. Um erro, um corte, um filete de sangue, e as piranhas avançaram em polvorosa. Ainda tentei resistir, segurei sua mão com toda minha força, aguentamos meses, outros nove meses de crises de ansiedade, até que as piranhas conseguissem destroçar dedos, mãos, braços, corpos inteiros. Vidas inteiras. O cardume levou minha filha. Sequestrou minha filha. Resgates mensais nunca bastam.
Hoje, sou o pai acusado de “ter feito alguma coisa muito grave” pra minha filha, “ameaçada de morte” por mim e que, por sua vez, “deve ter visto alguma coisa muito grave” na minha casa, casa onde, na verdade, ela estava sendo lobotomizada pra se tornar uma “menina alternativa”, tudo porque a mãe “não admite que ela” me “ame tanto quanto ama ela” (sic). Totalmente sic. Com e sem “k”. Tudo errado.
Hoje, nove meses depois, nove anos desde que me separei da sua mãe, minha filha fez dez anos. Sem o pai.
Hoje, sem nove dias, sem nove horas, deixei todos os prazos de lado.
Hoje, decidi falar.
Hoje, quem pariu fui eu.
E como dói.
.:.
(aos moralistas e oportunistas de plantão: isso aqui não é vida pessoal. fiz questão, inclusive, de não citar nomes. alienação parental é coisa cada vez mais comum e, pelo visto, cada vez mais grave. em meio ao vasto uso de figuras de linguagem, próprias da ficção, qualquer semelhança com pessoas, fatos ou situações da vida real, infelizmente, terá sido mera coincidência)