Nahima Maciel teve coragem de perguntar, eu tive coragem de responder.
agradeço demais (mesmo) o espaço, a oportunidade de falar o que havia muito estava entalado. como o site é fechado pra assinantes, joguei a entrevista na íntegra abaixo.
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Na estreia em prosa, Eu, cowboy, Caco Ishak reflete sobre o choque entre os séculos 20 e 21
por Nahima Maciel
Carlo Kaddish está em crise. Ainda não completou 30 anos, mas já é herdeiro de uma geração que nasceu a cavalo entre dois séculos. O personagem de Eu, cowboy, o primeiro romance publicado de Caco Ishak, vive à sombra do fracasso, na expectativa de vários fatos que não acontecem e que acabam por tomar a dimensão de uma crise existencial. Ishak define Kaddish como “o elo perdido” entre dois tempos, um sujeito que sempre tenta “puxar a sardinha” para o século 20 enquanto vive os excessos do século 21. Um pária, na visão do autor. “Visivelmente perdido, controverso. Como acontece em todo choque entre gerações”, garante Ishak.
Kaddish vive em Belém, é pai de uma garotinha sobre a qual pouco revela, tem uma turma de amigos-companheiros de baladas junkie-trash e transita entre o submundo e a elite. O rapaz tem vários planos para depois, mas não realiza nenhum. Seu malogro é sempre iminente e funciona como um combustível. Não há meio termo e, como boa parte de sua geração, Kaddish tem voz ativa nas redes sociais e por lá exercita uma parte de sua personalidade autodestruidora e egocêntrica. E vive no mesmo ritmo que Ishak escolheu para a narrativa.
Goiano criado no Pará, autor de dois livros de poesia — Má reputação e Não precisa dizer eu também — considerados uma das revelações da jovem poesia brasileira dos últimos cinco anos, Ishak escreveu um romance veloz, cheio de quebras de linguagem que parecem remeter aos fracassos do personagem, cujos diálogos são reproduzidos como se fossem um fluxo de consciência.
É fácil comparar a escrita de Eu, cowboy com aquela praticada pelos poetas e autores beats, mas o curioso é que o personagem de Ishak, ao contrário dos americanos de Jack Kerouac, não sai do lugar.
O cowboy do título é uma referência ao arquétipo do machão, aquele, Ishak aponta, eternizado por Marlboro, o mesmo vivido por Clint Eastwood e Butch Cassidy, ou, mais recentemente, por John Travolta e Matt Dillon. É uma referência de época que ajuda a marcar a crise existencial de Kaddish, mas também uma realidade que, para o autor, não pode ser ignorada. “Tem o lado dessa coisa bem século 20 dos seriados nos primórdios da tevê, os primeiros enlatados americanos. Daí cowboy, não caubói. O próprio ideal de caubói que nos vendem através dos mega rodeios da vida pelo interior não tem nada a ver com a realidade no campo”, diz. “Nossos peões passam longe disso no dia a dia. Embora seja justo o arquétipo em si da outra extremidade no paradoxo, fazendo frente à parcela tautista da sociedade que se pretende digital, igualitária. Acho que não existe nada mais emblemático para ilustrar esse choque entre o terceiro-mundismo e a transição da hiper-modernidade ao pós-humano do que a figura do caubói/cowboy”.
Elogiado pela crítica — Mario Bortolloto ressaltou o alter-ego “Ginsbergiano” de Caco, Marcelino Freire confessou que queria ter escrito o livro e Daniel Pellizzari simplesmente aprovou —, Eu, cowboy é um livro para se ler de uma vez, de um fôlego, sem piscar nem escorregar, de um jeito a não desgrudar do ritmo da linguagem.
ENTREVISTA: CACO ISHAK
Seu personagem é um reflexo de uma figura comum hoje em tempos de redes sociais como repositório do que há de mais efêmero e superficial da sociedade contemporânea?
Totalmente e de maneira nenhuma. O Cowboy é seu próprio crítico e nem faz ideia disso. É um tautista, fechado em si mesmo, neurótico, delirante, autorreferencial. Vai tomando consciência do processo, ainda que relutante até o último suspiro, ao longo do próprio processo. Não entende, por exemplo, como pode ser considerado machista no Séc. XXI quando era considerado pró-feminismo no Séc. XX. Não dá o braço a torcer. Sai aos brados defendendo uma maior reflexão por parte dessa geração enquanto não para de emitir opiniões sobre tudo, frases de efeito, algumas carregadas de poesia, outras simplesmente vazias. Permanece nesse conflito talvez até o ponto final.
O que você acha, aliás, das redes sociais?
Como tudo na vida, tem seus prós e seus contras. Eu, autor, tento ver o lado bom da coisa na medida do possível (até pra não surtar). Se não fosse meu orientador, a bem da verdade, eu teria escrito uma verdadeira ode desenfreada à rede durante o mestrado. Mestrado que foi fundamental na revisão do livro sob esse aspecto, o Eugênio Bucci soube refrear meus impulsos mais entusiastas e me mostrar o outro lado da força. Pra ficar num exemplo prático: como dá pra dizer que o Brasil é um país com inclusão digital enquanto essa inclusão ainda se dava com internet discada em Macapá até dia desses? Inclusão digital não é só colocar um celular nas mãos do caboco, principalmente se esse celular nem pega 3G. As redes sociais têm sua importância, claro, mas a sociedade está longe de se resumir a elas. De resto, têm seus párias (ainda que alguns embuídos de um hedonismo sado-egoístico no discurso coletivo) e seus santos (os famosos imbecis funcionais). Não resume a sociedade, mas fornece um bom retrato. E, como todo bom retrato, tem sempre algo escapando da vista.
Você já disse que é um livro sobre o fracasso. Por que o fracasso?
É sempre bom relembrar a vulnerabilidade da “condição humana” numa época de super-homens. Desde que não se tente usar isso como moeda de troca, claro. Especialidade dos publicitários. Quem denigre, pelo menos, mostra a cara, conhece-se o inimigo. Só tem gente virtuosa no meu Facebook (ademais, costumo dar unfollow nos reaças). A moda agora é cair de pau em cima dos defeitos dos outros, sempre o mesmo inferno. Sean Penn no Oscar, Beauvoir no Enem. Um racista, a outra nazista-pedófila. Bom senso nenhum. Falta bom senso até pra concordar com o Cowboy: “garotas perdidas”. Mas não que isso seja característica dessa geração, nem da minha (qual é a minha?), nem da “geração perdida” do Hemingway ou dos românticos. Os fracassados sempre foram e sempre serão a força-motriz da sociedade. Os párias são necessários. Quer geração mais frustrada do que os hippies? Foram os maiores fracassados do Séc. XX. Os hippies envelheceram (por favor, não me venham com Fora do Eixo), a guerra continua a se renovar a cada dia, seja a nível macro ou micro (aí sim, podem vir). Mas quem pode condená-los? Quem pode condenar Margaret Sanger? Feminismo de um lado, eugenia do outro. Qual pesa mais na balança? Quem no Facebook é tão puro e inocente a ponto de poder se considerar a balança em si? Ainda pior: quem pode ter a pretensão de ser essa balança eletrônica, tão precisa, mas sem a devida humanização do processo, sem calcular o peso temporal aos poucos, harmonizar as medidas aos poucos, tirar de um lado, colocar do outro, até um justo equilíbrio? O Cowboy? Reconhecer nossas fraquezas, nossos fracassos como pessoa, como balança, é necessário. Reconhecer o espírito de cada tempo, seus párias, e como chegamos até aqui. Essa é a busca, ainda que inconsciente, do Carlo Kaddish.
O século 21 está condenado ao fracasso?
O ser humano está condenado ao fracasso, se já não fracassou. Esse talvez seja o Cowboy falando mais uma de suas frases de efeito. Talvez seja eu. Como já disse: tudo tem seus dois lados. O que é fracasso pra um pode não ser pra outros, começa daí. São tempos nebulosamente relativos ao tempo em que dualistas, uma era liquidamente maniqueísta. Não dá pra ser futurólogo que nem o Kurzweil e prever maravilhas quânticas pós-humanas, tampouco ser um dramaqueen existencialista que nem o Kaddish. Ainda assim: com tantos Kurzweils por aí, penso que é bom ter um Kaddish que atire a pedra na vidraça ou espezinhe a grama do vizinho. Infelizmente, pra desgosto de certos deboistas, nem se firmar nesse maniqueísmo líquido ele consegue. Novo fracasso?
Você diz que o romance é uma DR entre o autor e suas catacumbas. Quais são suas catacumbas?
Até pelo próprio distanciamento natural requerido pelo romance, trata-se sempre de uma conversa com os mortos (com “nossos ossos”, pra ficar com o título do romance do Marcelino Freire), ainda que bem vivos. Tem de deixar que morram primeiro, ainda que a contragosto. O livro tem várias catacumbas antes abertas que precisaram ser fechadas, deixadas pra trás, ainda que a contragosto. Quem me conhece sabe da minha batalha contra a alienação parental. Eu, nesse aspecto específico do livro, sou a própria catacumba. Morri em vida. O personagem, nesse sentido, é quem acaba fazendo as vezes de autor e dialogando comigo, feito (ainda que a contragosto) personagem.
Pode contar um pouco o problema que teve com a polícia em Belém e que acabou por fazer você sair de lá?
Eu nunca tive problema com a polícia, a polícia (militar) que sempre teve problema comigo. Meu problema é com autoridade, o excesso, o abuso. Meu problema é com encapuzados que invadem um hospital pra executar um “bandido”. Acho que parte da corporação em Belém acabou se incomodando com isso e eu acabei virando um problema. Não só eu, diga-se. Não fui o único a ter de sair de Belém por causa dessa perseguição. O caso dos donos do 8 Bar, Karllana Cordovil e João Paupério, foi absurdo. A PM plantou drogas e dinheiro no estabelecimento, os dois foram acusados de tráfico, inocentados, saíram do país temendo represálias (Belém não é exceção, afinal). Não fomos os únicos, claro, trata-se de um grupo bem específico que bateu de frente contra os desmandos de tal parcela da corporação. Fora toda a periferia desde sempre. Enquanto isso, os verdadeiros traficantes, os do colarinho branco, continuam passeando soltos pela Mangueirosa, tocando as mesmas empresas que usavam pra lavar o dinheiro do tráfico nos anos 90, frequentando as mesmas igrejas onde rezavam nos anos 90, desfilando pelos mesmos cassinos clandestinos onde se reuniam nos anos 90, “escoltados” pelo mesmo espírito de porco de parcela da corporação policial, ainda se valendo de advogados picaretas e um judiciário corrupto pra se safarem. Meu segundo romance vai tratar de tudo isso (além dos dramas existenciais de praxe), já venho trabalhando nele faz dois anos. E eles sabem. Quem disse que estou morando em São Paulo?
Quais são as caras da literatura contemporânea brasileira, na tua opinião? E como está o Pará nesse mapa?
A literatura contemporânea brasileira é um bicho de sete mil caras e cabeças. Não que seja um fenômeno isolado, é só mais um sinal dos tempos. Isso é bom? Ruim? Todos nadadores (como bem definiu um amigo), todos na mesma travessia da Mancha (como bem definiu outro). Com o Pará não é diferente, e no próximo dia 12 de janeiro, aniversário de 400 anos da capital, vai ser lançada uma coletânea com algumas dessas mil e uma facetas locais. E quando digo que não é diferente, não é mesmo: o Pará é só mais um ponto conectado à rede, por mais isolada que esteja a estrela na bandeira nacional. Todos na mesma travessia. E que fique claro: isso nada tem a ver com a tal “inclusão digital” apregoada por aí; não estou me contradizendo, pelo contrário. Poeta hoje publica no Twitter, qualquer edge dá conta, vai no discadão mesmo. A literatura sempre acha um caminho. As ideias sempre acham um caminho. Publiquei meus três livros por editoras independentes. Me considero, portanto, mais um escritor independente do que um escritor paraense ou goiano. Um nadador independente. Mas estamos falando de um mapa cibernético, portanto: há quem pegue uma prancha e saia surfando na crista da onda. Não é contra as regras, afinal. É quase uma regra, a bem da verdade. Mas as regras, como todos sabemos… e algumas pranchas acabam sendo quebradas pelo caminho. Belém, assim como Brasília, Manaus, Natal, Rio, São Paulo, todas têm alguns tantos bons nadadores, todos com as mesmas ou similares dificuldades. Braçadas-coletâneas ajudam. Hoje, morando no eixo, a maior diferença é que posso beber com mais frequência (embora ainda raro) com quem bebia uma vez a cada ano ou dois ou dez, sempre com algum novo nadador ao lado. De resto, como todo nadador sabe (ou deveria saber): melhor se contra a corrente que é pra fortalecer os braços.