Bom dia.
Clichê já batido, eu sei, só não resisto à analogia entre literatura e boxe após ler “Somos mais limpos pela manhã”, ao que desde já peço perdão. Fato: um bom boxeador não sai desferindo socos ao vento. Sabe quando se esquivar. Quando sapatear mais um pouco pra confundir o adversário. Quando ameaçar um jab e recolher o braço e desarmar com a esquerda pra enfiar um gancho e, aí sim, com o adversário já devidamente desnorteado, desencadear uma sequência de golpes que há de botar o sujeito pra beijar a lona. Isso, se o sujeito não for um lutador de rua. Lutador de rua não beija lona. Nem sobe em ringue pra começo de conversa. Ao ringue o que é do ringue, afinal, e à rua… o asfalto. E quem é da rua se recusa a beijar o asfalto, a baixar a cabeça aos “profissionais”, não: levanta, mesmo um tanto cambaleante, e ainda tira onda antes de partir pra cima, já aperfeiçoando a técnica do oponente manjada na surra levada de início. Veja bem: aperfeiçoa, não emula. Lutador de rua é malandro. E malandro que é malandro não emula, reinventa. Este, portanto, não é o livro de um boxeador.
Ludibria direitinho, o menino. Quem vê a cara de anjo do Jorge Filholini nem imagina a fauna de demônios que habitam o moço, ensovacados por ouvidos e dentes ao longo dos caminhos percorridos de norte a sul, palafita a pau a pique, por um observador sempre em alerta. Não à toa, outra arte que o Filholini domina com sensibilidade aguçada: a fotografia. E lá estão registrados todos os personagens. O servente de obras, o idoso, o crente, o pai de família, o pai com AVC, o pai que mata a própria filha, o próprio personagem, um taxista reaça atropelando ciclistas, um traficante, o amigo traíra, o farelo levado pelo poetinha da baixada, o poetaço, a estrela do Face. Cada conto, uma fotografia pintada à mão. Ou sopapeada mente adentro.
Golpes curtos, sim. Entremeados por longos, claro, sempre que necessário. Nada porém de Hemingway ou Bukowski. No (devido) lugar, a antropofagia segundo Clóvis de Gusmão: “Períodos curtos. Quentes. Sacudidos. Mais substantivos que adjetivos. Quer dizer, mais ideias do que ornamento. Como índio. Carne. Sem roupa”. Afinal: “Não é só literatura. É política. Religião. Tudo”. (apud CASTELLO, José Geraldo. A literatura brasileira: origens e unidade, 2004, p. 89) A fonte aqui são nossos modernistas. Uma estrada cujos buracos se preenchem na ausência, cortando a mata atlântica.
É preciso “ter cabelos no coração” pra se viver nas quebradas de um país terceiro mundista onde o asfalto é menos asfalto e não ceder às tentações de Cristo, não acabar saindo das páginas do caderno de poesia às páginas do caderno policial. “Tento um altar dentro de mim para pedir perdão. Mas os santos viraram os rostos”, confessa o “irmão sangue bom” após se livrar do estorvo pra enfim poder voltar a preparar seu macarrão, sossegado.
É preciso não se importar com os likes ou dislikes (ou deslizes, como bem queira o corretor) pelas imobiliárias no caminho. Afinal, quem é do asfalto sabe: de nada valem “incontáveis likes” na prati-cidade do dia-a-dia. Sofre quem se entrega ao conforto das lonas e tapetes vermelhos, quem não se conforma com “a invisibilidade das calçadas”.
Para tudo.
Tapa na cara.
Bem estridente.
Capricha, sonoplasta.
Corta pra Emma Stone mandando a real pro Michael Keaton em Birdman: tem um mundaréu de gente por aí lutando pra ser relevante todo santo dia – você não é importante, melhor se acostumar.
A consciência já tão bem formada de um autor estreante quanto à transitoriedade das vidas mimetizadas na obra, portanto, da obra em si. “Narra direito ou abandono o texto”, diz o personagem de Mataram o narrador, cutucando os frangos de caçarola da literatura nacional: “escrever à mão ninguém mais quer. Dói o punho. Tadinhos”. Logo, do próprio autor.
Quem seria o Senhor H? Quem seria esse poeta “sempre solicitado nos saraus pra recitar aquele verso do Paulo Paes ou do Bandeira” e que hoje já não consegue lembrar a senha da própria conta bancária? Seria o H de Herói da literatura nacional? Ou heróis nada salvam senão os próprios umbigos? O país se salva. E… lá vem o Brasil descendo a ladeira.
E com o Brasil, todos os heróis de verdade, os heróis da rua, os mesmos retratados pelo Jorge Filholini na literatura ou na fotografia ou numa conversa-fiada de bar. As chagas de um herói comum, ainda que já não sambe feito o pai, enlatado num sonho classe-média com garagem, previsível e cotidiano, My way na vitrola. “A casa sempre sabe o próximo passo de seu dono”. As chagas de Antônio Carlos cortando “sua pizza como um príncipe”, um covarde. Ainda assim: his way.
Judy Davis a Woody Allen em Desconstruindo Harry: Com quem você pensa que tá falando? Com algum daqueles apresentadores de TV estúpidos?
Ao narrar as digressões de um filho acompanhando os últimos dias do pai com AVC no conto que dá título ao livro, em pleno carnaval, justo quando o velho conheceu sua mãe, o velho a quem chamar “de senhor é mais importante que chamá-lo de papai”, Filholini parece assumir descarado a própria voz e vasculhar “o passado dos outros. As histórias de amigos adaptadas para a minha vida. Escritas em cima de momentos que nunca foram realizados com o meu pai”. Como, de resto, em todo este “Somos mais limpos pela manhã”.
(Há)
caminhos, portanto, sem volta:
“Abandonar isto aqui não dá mais. Já tá na pele. Nem com sabão arranca.”
O escritor se revela aos olhos de uma criança, o próprio, e se questiona:
“O que você quer fazer quando crescer?”
Já respondido no conto anterior, batalha constante contra o mundo e si mesmo da qual o malandro não tem como escapar, embora suas chinelas prossigam estalando nos calcanhares a cada passo descompassado e sua língua em sorrisos e versos na cachola mui bem escondidos pelo chapéu:
“Sonetos não vão à guerra. O poeta sim.”
Evoé, meu Filholini.
(prefácio escrito para “Somos mais limpos pela manhã”, de Jorge Filholini, a ser publicado em breve pelo selo Demônio Negro)