CULPA

PREFÁCIO

Bibiana Leme

Este livro é um expurgo. Sintoma de doença malcurada, herdada, cujo remédio nunca acertamos.

Caco Israque (se lê assim) faz aqui um mea machina culpa. Vivemos, afinal, no tempo dos robôs e dos sistemas. Clicamos em “aceitar” e seguimos em frente, sem nunca ler os termos desta nova sociedade. De(s)controle. Mas as pessoas, por serem mais baratas, ainda fazem o trabalho sujo.

Em nome da facilidade, vemos a realidade se distorcer cada vez mais, todos os dias. Testemunhamos a desigualdade, a injustiça, a sacanagem. E ou sentimos muita culpa ou não sentimos nenhuma. Não conseguimos jamais estabelecer uma relação razoável com a culpa. A justa medida.

Agora, porém, que o céu caiu na nossa cabeça, não adianta negar que estamos vendo, porque ele tem peso. Votamos no professor. Ou ao menos não votamos no torturador. Muito bem. Fizemos o mínimo. Mas quantas vezes fazemos algo pelo simples fato de que é justo? O que você faz quando ninguém está vendo? Que culpas carregamos escondidas?

Não há final feliz garantido para nós. Não há deus ex-machina. Há sujeitos. E sujeitas. Mesmo por trás das máquinas. Nossa máxima culpa, a que nos cabe neste latifúndio improdutivo.

Não conseguimos entender que uma sociedade doente é um indivíduo doente é uma sociedade doente… A tampa da privada de um banheiro público será deixada igualmente suja, para que “alguém” a limpe, esteja ela num shopping center rico ou num shopping center pobre.

É justo que uma criança que ama seu pai, e que tenha um pai amoroso, não precise derrubar o muro da calúnia para conseguir enxergá-lo. É justo que as fronteiras sejam mais gentis com as pessoas que com as mercadorias. Que a força desigual não seja jamais usada por quem sabe a dor que ela provoca. É justo viver sem muros. É justo, sempre foi justo. O micro e o macroespaço são reverberações. Juntos habitamos um planeta, mas não conseguimos coabitá-lo. Uma tia gagá desgarrada, uma criança de rua babada e encantada, um poodle sem dentes que achou por bem desertar, vingadores periféricos da memória de uma jovem vítima de feminicídio, toda uma sociedade das margens. Marginal é o que nos cerca. E, no centro deste livro, curiosamente, habita um enfant terrible. A criança que tem tudo nas mãos e não quer. Mas não quer com tamanha força que precisa destruir tudo que tem. Tudo que existe.

As palavras de Ishak são capazes do asco e da frase mais saltitante. Psicógrafo de uma vida que oscila a cada segundo entre a luz e a sombra. Quem bate à porta traz a janta ou a morte? A resposta está em nossas mãos, como contou Toni Morrison em seu discurso do Nobel: algumas crianças vão a uma anciã cega para pregar-lhe uma peça e perguntam se o pássaro que têm nas mãos está vivo ou morto. Eu não sei, mas está em suas mãos, diz a mulher. A resposta entre a vida e a morte passa pelas nossas mãos todos os dias, em maior ou menor escala.

Coabitar é risco. Escrever é risco. Coabitar o espaço mental com o outro. A outra.

Aqui jazem os cacos de Ricardo Ishak.

About caco ishak

deu pau no servidor da verbeat
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