– Pois é, bicho, tão proibindo a entrada desses vendedores de bala nos ônibus de Belém.
– Como assim? Quem tá proibindo? Por quê?
– Daí, já não sei. Te vira. Descobre. Mas, prestenção… vai a caráter.
E lá foi Caquisraque, rumo a mais uma das roubadas em que, desde pequenino, estou acostumado a me meter. Ambulante de busão por um dia, a pauta. Seus desdobramentos ficariam por minha conta e perspicácia. O importante era reconhecer o terreno. Um dia normal de trabalho como outro qualquer, a movimentação de um piquete em frente ao órgão responsável pela proibição, coquetéis molotov nas conduções em forma de protesto. Todo esse resto dependeria de uma decisão minha. Tinha dez reais no bolso e a timidez de um líder nato. Pra descobrir, era só começar.
Antes, porém, a caracterização. Camiseta do tempo do ronca, tão puída quanto o bermudão surrado de quando tinha dezessete anos, chinelas velhas deixando à mostra as unhas dos pés por cortar havia algumas semanas (fazendo par com a barba mezzo hippie da República mezzo terrorista islâmico) e um boné promocional de casa de material de construção pra proteger a calva do sol. O espelho me dava os parabéns – ainda que com certo cinismo nos olhos.
Do cínico ao estranho, foi um passo. Alguns vários, a bem da verdade, do caminho de casa até o ponto de ônibus mais próximo, sob o estranhamento dos que me conheciam da rua onde moro. Um e trinta e cinco pela passagem (em tempo: subiu quinze centavos desde então). Em minutos, chegaria à Travessa Marquês de Pombal, bem ao lado do Ver-o-Peso, onde investiria meu precioso montante em mercadoria. No trajeto, um ambulante tentou embarcar. Foi barrado. Da janela, fitei seus olhos. Era estrábico. E manso, talvez de acostumado. Não praguejou contra o motorista, nem nada. Já foi fazendo sinal pro próximo que chegava.
Desembarquei. Três lojas me ofereciam produtos dos mais variados, apesar de todas terminarem seus nomes com “caramelo”. Restavam-me oito reais e sessenta e cinco centavos. Sete e quinze, pra ser honesto. Um e cinqüenta (em tempo: subiu dez centavos), tinha investido num maço de cigarros pra agüentar o tranco numa boa – ambulante também é gente e fuma, afinal.
Após entrar e sair dos estabelecimentos várias e várias vezes, analisando preços e doces e levantando suspeitas, decidi-me por uma caixa de pastilhas de hortelã com quarenta unidades. A mais barata, por seis e setenta (em tempo: não sei quanto subiu). Cinqüenta centavos a menos do que a marca concorrente. Minha matemática: cada unidade tinha dez pastilhas; quarenta unidades, faz as contas, arredonda, uma unidade a dezessete centavos; menos de dois centavos por pastilha; dobra o preço, arredonda, quarenta centavos a unidade; faz um desconto amigo por arredondamento, três por um real e ainda sairia com cinqüenta de lucro; uns sete reais pela caixa; no dia seguinte, daria pra duas – houvesse dia seguinte.
Saí da loja com um sorriso de quem estava certo de ter feito bom negócio. Passava um pouco do meio-dia. Barriga vazia. Perto dali, um senhor vendia suco e salgado a cinqüenta centavos (em tempo: não subiu nada). Faltavam-me cinco. Meu tino pro comércio em cena novamente. Acabei inteirando com uma menta. Estômago forrado e sem mais tostão no bolso, a Avenida 16 de Novembro me parecia longa como nunca sob o sol do mercado. Não tão longa, entretanto, quanto a Almirante Barroso, meu destino e via predileta dos ambulantes. Hora de partir.
Mas, calma aí. Não tinha pensado no fundamental: um discurso. Logo eu, que sou péssimo na oratória e não levo jeito nem pra pedir passagem no meio da multidão (pânico de multidão, aliás, é o que sinto; acabo ficando paralisado no mesmo lugar). Claro que não precisava bolar um senhor tratado sobre a mazela que é isso de se viver no mundo cão roendo osso na falta de carne farta na bisteca pra lamber os beiços de gordura. O que não podia, também, era chegar lá com a cara mais lavada do mundo e simplesmente sair despejando pastilhas de hortelã no colo dos outros. Pagar uma de mudinho… talvez até emplacasse. Encenação demais pra quem nunca tinha pisado num palco. Não daria, mesmo. Algum monólogo tinha de ser preparado, ainda que dos mais canalhas.
A questão era só uma: por qual linha de sermão enveredar. Imagens sentimentalóides e carregadas de emoções piegas, que despertassem a compaixão dos passageiros? Frases de impacto raivosas contra o sistema e o maldito capitalismo selvagem e seus porcos imundos que chafurdam na lavagem de dinheiro? Fazer o tipo maluco travado, engasgando nas palavras e caprichando nos cacoetes com os olhos ao jogar um dos ombros pra trás, cabeça penda? Ex-tudoquenãopresta convertido à Igreja Adventista do Sétimo Dia ou o engraçadinho gente boa que tira barato com todo mundo e das moçoilas um sorriso com a mão tampando a boca? Caso sério…
Cara de coitado, não tenho mesmo – não importava o quão farroupilha me dispusesse a ficar, meus dentes, rugas e calos continuariam em seus devidos lugares. E meu biótipo, definitivamente, não é o de um caboclo amazônico – do alto de meu metro e oitenta, tez leitosa e nariz afilado. Complicava. O discurso seria decisivo, portanto. A escolha tinha de ser batata. E rápida.
Não me permiti pensar duas vezes e decidi encarnar o desempregado de descendência mineira com sotaque nordestino, sozinho na vida e importado do sul do estado pra trabalhar como vigia noturno numa das recentes incursões comerciais de meu antigo patrão e que, chegando à cidade grande, fora dispensado sem mais nem porquê, ficando às mínguas, só com alguns trocados no bolso, os quais acabei investindo nas balas que ora vendia na esperança de juntar uma quantia que fosse pra poder comprar um bilhete de volta ao interior e recuperar a honra perdida estourando os miolos do cabra safado que havia me mandado praquele inferno. Esta última parte seria segredo, claro. Mera licença poética personalíssima pra que eu mesmo pudesse acreditar no que estaria falando e incorporar a personagem com louvor.
Se daria certo ou não, era pagar pra ver. Tanto melhor: entrar de graça, oferecendo balas. De cara, já saí dando sorte. O primeiro motorista não impôs barreiras e embarquei numa boa. Ao menos, até a roleta, onde me enrolei um pouco na hora de passar. Não podia passar, por supuesto. Não estava pagando por meu bilhete. Ambulante inexperiente, acabei entrando pela porta errada, a da frente, quando o certo seria entrar pela porta de saída e não ter de enfrentar a catraca. Perder a oportunidade do primeiro ônibus, também não perderia. Seguir adiante, custasse o que fosse. O cobrador, então, bem camarada, deu-me as duas únicas e óbvias opções: vai por cima ou por baixo, meu amigo. Se por baixo, só engatinhando. Pedi que, por favor, segurasse minha caixa de hortelãs e dei um salto. Não caí por pouco. Logo me recompus. Nada se comparado a enfrentar minha primeira platéia.
E deu branco. Todo o discurso previamente preparado, revisado e recapitulado não sei quantas vezes, desapareceu da memória tão logo levantara o rosto e encarara os passageiros. Ergui as sobrancelhas. Todos me fitavam em silêncio. Ou pedia desculpas e tratava de dar o fora dali (o ônibus em movimento) ou me virava de algum jeito. Saí-me com essa: tenho braços, pernas, saúde e disposição. Só não me perguntem por que não tenho emprego, porque essa nem eu sei responder. Mas sei vender balas de hortelã. Uma por cinqüenta, três a um real. Não pareceram gostar muito do humor negro num vendedor de balas e acabei descendo sem cliente satisfeito algum.
Ônibus seguinte, embarquei sem contratempos novamente. A proibição não parece ter surtido efeito, afinal, na Cidade Velha. Dessa vez, já escolado, consegui convencer dois passageiros a levar um pacote promocional cada. A sorte voltava a estar do meu lado. Não por muito tempo, porém. Uma questão de nos aproximarmos de Batista Campos e a magia pró-autônomo se dissipar.
Demorei até ter a chance de embarcar num outro coletivo. Ainda que por engano do motorista, pensando se tratar de um pagante como outro qualquer. Um grupo conhecido de emos, sentados no fundão, ria enquanto o condutor me apontava a câmera filmadora acoplada ao teto como forma de fiscalizar a entrada de meus colegas de atividade. Não soube me responder o porquê daquilo, nem se a proibição se restringia a menores de idade (como a Procuradoria Regional do Trabalho procura justificar a medida, segundo Delso Souza, consultor técnico da Setransbel – o sindicato patronal dos rodoviários: “a solicitação do Ministério Público já vem desde o ano passado pra não deixar a entrada de menores que vendem bala. Chamou as empresas e fez com que assinassem um termo de conduta nesse sentido”), embora acreditasse ser em razão do bem-estar dos passageiros, segundo escutara numa das reuniões do sindicato. “Vocês incomodam demais, vai descendo”, ao que agradeci e me retirei de sua condução – ou fui expelido, vez que mal colocara um pé no asfalto e ele já acelerava. Os emos vibravam.
Não foram os únicos a quase arruinar o disfarce, no entanto. Ao longo do percurso, ainda me depararia com uma antiga babá, desconsolada ao me ver naqueles trajes e situação (acabou levando dois reais de menta), e com um incrédulo Ricardo Maradei, da banda Stereoscope. Da primeira, custei um tanto pra me livrar, caprichando na atuação. Já o segundo, simplesmente ignorei e por ele fui ignorado, como, aliás, em todos nossos encontros pregressos e posteriores. Não que fosse necessário alguém, a bem da verdade, pra colocar tudo a perder. Eu próprio era auto-suficiente nesse sentido. Só o tempo de aparecer um esperto pouco além da média.
Apareceu Zé Neto. Vinte e nove anos, unhas em circunstâncias bem piores que as minhas, cabelos longos presos num coque. Desempregado faz dois anos, encontrou na venda em coletivos uma alternativa pra lá de viável no sustento da família – mulher e filha. Chega a tirar vinte, trinta reais por dia com balas de chocolate mentoladas a dez centavos cada. De fazer inveja aos quatro reais que até então levava no bolso.
Pela conversa que travamos nos vinte minutos em que esperávamos um ônibus que nos acolhesse em plena Av. Nazaré, concluí que o fracassado era eu mesmo, vez que era essa a média tirada pelos demais ambulantes (Roberto Sena, supervisor do Dieese no Pará, não soube informar o número exato de quantos estão nas ruas – pro Departamento, eles simplesmente não existem). Zé Neto, de poucas palavras e pra lá de desconfiado com tantas perguntas, mostrou-se bastante inconformado com a proibição, embora não tenha me dado muita bola quando sugeri que organizássemos uma passeata em frente a algum órgão – não havia tempo pra isso em meio à escassez de coletivos, deduzi. Um ônibus parou, enfim. O motorista consentiu que embarcássemos. Dei a vez a Zé Neto, que não estava ali a passeio. Subiu sem se despedir.
Ainda o encontraria ao longo da Almirante Barroso até o Entroncamento, meu destino final. Mas era tentar uma aproximação, pro sujeito logo se afastar. Deve também ter dado um jeito de avisar aos companheiros que havia carne nova no pedaço, que ficassem espertos. Encaravam-me de modo estranho – um cana infiltrado? Faria sentido, de acordo com Delso: “A implantação das câmeras foi idéia nossa pra conter a violência nos ônibus. A polícia não tem condições de resolver o problema sozinha, não tem como colocar um PM em cada ônibus. A experiência em São Luiz tem dois anos e vem dando certo, com resultados muito bons. Aqui, 45% da frota já possui duas câmeras instaladas que observam todo o comportamento dentro dos ônibus. A fita é recolhida e analisada por dois estagiários que fazem o monitoramento. Quando algo é detectado, encaminhamos pra polícia. Já houve uma redução de 70% dos assaltos desde a medida”.
Pois bem. Acabei observando tudo de longe. Todo o processo de persuasão e o faturamento. Conclusão: em Belém, tanto melhor se vender picolé, chopp, dessas especiarias geladas – ninguém aqui se importa com o hálito. Ou balinhas de 10, 20 centavos, com um papo pra lá de canalha. O que me leva a uma outra conclusão, ainda mais sagaz: sou um fracasso como comerciante. Não nasci pra ganhar dinheiro. Ponto.
Com a caixa de hortelã quase intocada, resolvi tomar o rumo de volta. Desta vez, a demora e as recusas compensariam. Um só motorista que me aceitasse e estaria em casa. Era só esperar. Quinze minutos. Meia Hora. Paciência esgotada. Tentei entrar em um na marra. Quase fui levado com o braço preso na porta. Xinguei o motorista e suas gerações, até a quinta. As pessoas me olhavam assustadas na parada. Baixei a cabeça, envergonhado. Um tanto puto da vida. Mais quinze minutos. Contei os borós. Daria pra pagar a passagem. Sobraria pra um maço. Embarquei no ônibus seguinte. Quem dirigia era um senhor de idade. Foi simpático na abordagem.
“A função do motorista é dirigir o carro. Ele cuida da vida de 70 pessoas, em média. Tem que estar concentrado em seu trabalho. Não dá pra ficar decidindo quem pode entrar ou não com passe livre”. As palavras de Delso ecoavam em minha cabeça. Cheguei em casa. Joguei as moedas na cama. Tomei um banho. Peguei as chaves do carro e fui tomar uns goles pra relaxar um pouco após um dia de trabalho pesado.
(matéria escrita em dois mil e sete, sem revisão posterior e desprezando completamente o novo acordo da língua portuguesa)