póstumo

É claro que eu não sei como continuar. Paralisado na frente do computador. Branco de Word beberiano da fonte que secou. Talvez porque eu esteja de chinela (das minhas lógicas). Talvez, se tirar as chinelas dos pés e pisar no frio da lajota, eu pare de procrastinar o momento em que, finalmente, pulo na piscina, saio nadando pelo mar, braçadas cada vez mais fortes, cansadas, doídas, entalhando as ondas que vão demarcar minhas entrelinhas. As entrelinhas onde eu me escondo, onde eu descanso. As entrelinhas que ninguém mais soube ler. Ninguém mais soube interpretar o nada que essa couraça estilística protege. Essa couraça estilística que só me furta de encarar o que venho enclausurando há anos, o fato que venho evitando há anos: o monstro que eu me tornei. Construindo labirintos linguísticos pra me perder nas palavras, confundir quem me lê, me esquivar da obrigação de opinar, de sair de cima do muro, dizer o que eu verdadeiramente penso. O que o minotauro pensa enquanto persegue quem lê meu labirinto. Como continuar? Paralisado de medo no meio do meu próprio labirinto. Não sei como continuar, mas sei que não acabou, longe de acabar. Daí minha urgência em regressar ao auto-exílio, continuar de algum jeito, descobrir o caminho enquanto persigo as saídas viáveis de erro em erro, não dá pra morrer na praia, no meu próprio labirinto, não dava pra simplesmente esperar a energia voltar, perderia o ônibus, o jeito foi descer os vinte e um andares pela escada e chegar ao térreo e me dar conta de ter esquecido as chaves da casa na praia e subir tudo de novo parando pra respirar na metade do caminho e descer já meio mancando e pular num táxi e descansar só no ônibus e aportar em Salinas perto da meia-noite e subir as escadas até a sacada da casa na praça da igreja e me sentar e fechar os olhos e dar um jeito de continuar. Nem que seja pelo começo. Poderia ser assim:

Escadas: tenho experiência.

Tudo começou aos três, quando meu pai subiu correndo pela escadaria de uma loja de brinquedos porque o filhinho aqui estava com vontade de cagar e só tinha banheiro no terceiro andar e não dava pra esperar o elevador chegar senão o filhinho aqui se cagava todo nas calças. Chegou lá, a vontade passou. Descemos. Primeiro andar. Eis quem volta? Dessa vez, meu pai me fez esperar o elevador.

Nove anos de idade. Meu pai me mandou trabalhar com meu tio nas férias. Meu tio, dono da construtora que construía o prédio em que eu moraria dali a dois anos e por outros dez, sem saber lá muito bem o que fazer com uma criança de nove anos num canteiro de obras, me mandou contar quantos degraus o prédio tinha. Quinhentos e trinta e dois. Minha obra em construção.

Aos dezessete, o Moscão. Depois de um mês tentando colocar a bandinha pra tocar no recreio da escola, conseguimos fechar uma data. Dia dos namorados. Ou véspera, sei lá. Semana dos namorados, que seja. Só deu Fábio Jr. Nos trocaram em cima da hora pelo Fábio Jr. A sede do centro acadêmico, responsável pela agenda, era um poleiro de pau podre afixado numa das paredes internas de tijolo no pátio da diretoria da escola, nos altos de uma escadinha com dois lances, pau mais podre ainda. Quando fiquei sabendo que tínhamos sido trocados pelo Fábio Jr., um sininho tilintou na minha cabeça, soltem a besta-fera de nome impronunciável, e lá fui eu desembestado, soltando fogo pelas ventas, detestando muito o Fábio Jr. e o Dia dos Namorados, cruzando o pátio do recreio, do anfiteatro ao pátio da diretoria, galopando pela escadinha de pau podre de três em três ou quatro degraus, destemido que só eu. Alcancei o topo do poleiro, arranquei a faixa da situação e comecei a bradar que exigia falar com algum responsável. Grilos on my mind. Mudei de tática. Desci aos pulos de quatro em quatro ou cinco degraus e voltei correndo pro pátio do recreio e, num salto, dispensando a escadinha de cimento, caí de joelhos atrás da dupla romântica, catei meu tamborim do chão e cadenciei o Fábio Jr. até o último suspiro do último casal apaixonado na platéia. Larguei o tamborim, pedi a palavra, catei o microfone e dei meu show particular. Guilhotinei do terceiro-suplente do centro acadêmico aos três diretores da escola. Acabou o amor. Ovacionado pelo recreio inteiro. Losers sem namoradas, pelo menos. Grande Moscão. O que me fez sair como presidente da Chapa Ação nas eleições seguintes pro grêmio estudantil. Fraudados pelo amor.

Vinte e três. A célebre história de quando, no meio da madrugada, após dois dias de espera por um cardiologista, perderam Amaranta na UTI. Liguei do quarto pra saber notícias. Não havia Amaranta alguma, pra começo de conversa. Minhas pernas bambearam, mas não o suficiente pra impedir o trem-bala instintivo em disparada pelas escadas do hospital e ainda esperneando pela porta e UTI adentro até encontrar Amaranta no mesmo canto de sempre, em cuja etiqueta se lia: Liessa.

Ainda mais célebre: vinte e sete. Eu, cowboy, contra as escadarias do Café com Arte.

Ou seja: escadas moldaram meu caráter.

Não poderia ter sido diferente. Vendo hoje, e a hipótese mais absurda que posso cogitar é que não poderia ter sido diferente. Porque poderia ter sido, sim, tudo diferente. Só que, bem ou mal, aconteceu exatamente do jeito que tinha de acontecer, como podia acontecer. Por mais absurdo que isso possa soar. You can’t always get what you want, but if you try, sometimes, you just might find you get what you need. Não baseia teus passos em histórias já escritas pelos outros, conselho que me foi dado por uma escritora amiga ao saber por alto sobre nossa vida. Mal ela sabia. Momento eternizado na fotografia. Já podia estragar tudo.

(trecho do segundo romance, ainda sem título, sem revisão e provavelmente póstumo. na real, uma carta, uma carta perdida, peça-chave pra se entender os pormenores de um romance à parte, no qual a carta se perde e acaba sendo encontrada só após a morte do autor, uma obra que só se completa com a morte do próprio autor — e que demore. o terceiro romance, portanto, seria o segundo, tomando o lugar do póstumo; ambos em andamento)

About caco ishak

deu pau no servidor da verbeat
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